Hoje, falamos em colapso ambiental quase como um refrão inevitável. Ondas de calor extremo, enchentes recordes, desertificação e tempestades violentas ocupam o noticiário como sintomas de um mundo em desequilíbrio. A ficção, mais do que nunca, parece correr atrás de um presente que já é distópico. Mas, curiosamente, a relação entre crise climática e imaginação especulativa não é nova. Ela está na origem da própria ficção científica. E tudo começou com um verão que nunca aconteceu.
O ano era 1816. A Europa vivia o chamado “ano sem verão”, quando as temperaturas caíram drasticamente, colheitas falharam e o céu permaneceu encoberto durante meses. O responsável: a erupção do vulcão Tambora, na Indonésia, no ano anterior, que lançou milhões de toneladas de cinzas na atmosfera, resfriando o planeta. Esse evento marcou o auge da chamada Pequena Era do Gelo (LIA), período de anomalias climáticas que durou do século XIV ao XIX. Em vez de campos verdes e passeios de barco, o continente viu nevascas em pleno junho, chuvas torrenciais e escassez de alimentos. O mundo parecia à beira do fim.
Foi nesse cenário sombrio que um grupo de jovens intelectuais — entre eles Lord Byron, Mary Shelley, Percy Shelley e o médico John William Polidori — se refugiou na Villa Diodati, um chalé às margens do Lago Genebra, na Suíça. A princípio, planejavam um verão de passeios, poesia e contemplação da natureza. Mas o clima inóspito daquele “ano sem verão” os manteve confinados, próximos da lareira, enquanto chuvas incessantes e o frio cortante transformavam o refúgio em isolamento. Para afastar o tédio, decidiram se entreter criando e contando histórias de terror — um gesto que acabaria moldando os alicerces da ficção científica e do horror moderno.
John William Polidori deu vida a uma figura sombria e fascinante ao criar The Vampyre (1819), considerado o primeiro conto moderno de vampiros. Na trama, acompanhamos Aubrey, um jovem inglês ingênuo que se encanta e, aos poucos, se apavora com Lord Ruthven — um aristocrata enigmático que seduz, destrói e se revela um predador imortal. Diferente das criaturas folclóricas repulsivas de tradições anteriores, o vampiro de Polidori é elegante, sedutor e amaldiçoado, uma inovação marcante para a época. Ao fundir sensualidade, poder e decadência, o autor estabeleceu o arquétipo do vampiro sofisticado, pavimentando o caminho para figuras icônicas como Drácula e influenciando profundamente a literatura gótica e o imaginário moderno.
Já Mary Shelley seguiu por um caminho inédito. Em vez de buscar criaturas do folclore ou mitologias ancestrais, sua imaginação voltou-se para o que havia de mais contemporâneo e inquietante: o avanço da ciência e seus possíveis excessos. Inspirada pelas discussões sobre galvanismo, eletricidade e os limites éticos da medicina experimental, Shelley concebeu a figura de um monstro não nascido da magia ou da maldição, mas criado pelas mãos humanas — um produto da razão que rompe com o natural. Naquela noite gelada de 1816, durante o desafio de escrever uma história de terror, nasceu a ideia que daria origem a Frankenstein ou o Prometeu Moderno, uma obra que não apenas ajudaria a fundar o gênero da ficção científica, como também lançaria questões filosóficas e morais que ainda hoje ressoam.
No romance, Victor Frankenstein é um jovem cientista obcecado pela ideia de vencer a morte. Em seu laboratório, usando pedaços de cadáveres e técnicas experimentais de reanimação, ele cria uma criatura de aparência grotesca e força descomunal. No entanto, assim que vê o resultado de sua ambição, Victor o rejeita — e a criatura, solitária e desprezada, vaga pelo mundo em busca de aceitação. Quando só encontra hostilidade, ela se volta contra seu criador, dando início a uma tragédia marcada por vingança, arrependimento e isolamento.
A própria ideia de um mundo sem sol, explorada por Byron, sintetiza o terror que ecoava naqueles dias. A escuridão não era apenas literal: ela era o pano de fundo de um momento em que a natureza parecia revoltada, e o homem, impotente.
“Eu tive um sonho que não era em todo um sonho
O sol esplêndido extinguira-se, e as estrelas
Vagueavam escuras pelo espaço eterno,
Sem raios nem roteiro, e a enregelada terra
Pendia cega e negra no ar sem lua.”
— Lord Byron, “Darkness” (1816)
A ficção nos permite extrapolar os limites da realidade e projetar mundos que desafiam o possível. Mas é curioso pensar que boa parte da literatura, dos filmes e dos jogos que consumimos hoje talvez tivesse seguido caminhos distintos se não fosse por um evento climático inesperado e disruptivo como a Pequena Era do Gelo. A tempestade que cercou a Villa Diodati não apenas mudou os planos de um verão europeu, mas acendeu a centelha de gêneros inteiros da cultura moderna. Da mesma forma, os fenômenos sociais, políticos e ambientais que enfrentamos agora estão moldando, silenciosamente, as histórias que o futuro irá contar. Porque, no fim, a ficção sempre retorna ao seu ponto de origem: o mundo real.
E talvez esse seja o grande legado de 1816 — lembrar-nos de que até mesmo o frio pode acender a imaginação.