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Violentada e esquecida: a triste história de uma criança de 11 anos que teve seus direitos negados

Este caso só traz à tona os valores distorcidos que ainda são perpetuados em nossa cultura: de valorização à vida que ainda está em processo de formação dentro do útero, e o esquecimento (e muitas vezes abandono) das vidas que já estão convivendo conosco, sofrendo das mais variadas formas em situações de risco e vulnerabilidade

23/06/2022 às 09h22 Atualizada em 23/06/2022 às 13h20
Por: Jussara Prado
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Reprodução/Freepik
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Viver no Brasil definitivamente não é para amadores. Nesta semana, me deparei com a atitude incoerente da juíza no caso de uma criança de 11 anos grávida vítima de estupro, na cidade de Florianópolis em Santa Catarina.

Após ser encaminhada com sua mãe ao HU da Universidade Federal de Santa Catarina (referência no serviço de aborto legal), a criança teve o procedimento negado pela equipe médica responsável, sob a alegação de normas internas que autorizam o procedimento somente até a 20ª semana, já que na época, a criança encontrava-se na 22ª semana de gestação.

Com a recusa do procedimento, a família buscou respaldo na justiça para a autorização do aborto advindo de um estupro, algo que é legalizado desde 1940 aqui no Brasil. Diante disso, o Ministério Público solicitou o acolhimento institucional da menor com o objetivo de protegê-la do agressor.

Entretanto, o acolhimento foi realizado sob outro pretexto. A juíza Joana Ribeiro Zimmer, alegou o risco de a mãe efetuar algum procedimento para “operar a morte do bebê”. E com isso, a menina acabou sendo mantida em um abrigo por mais de um mês.

E você acha que termina aí?

Na gravação da audiência, a juíza conversa com a criança (vamos relembrar que esta criança tem 11 anos e foi vítima de violência sexual), pedindo para que ela suporte “ficar mais um pouquinho”, para aumentar a chance de sobrevida do feto.

Gostaria de compartilhar contigo, um trecho da fala que esta juíza teve com a criança: “em vez de deixar ele morrer – porque já é um bebê, já é uma criança -, em vez de a gente tirar ele da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando, porque é isso que acontece, porque o Brasil não concorda com a eutanásia, o Brasil não vai dar medicamento para ele. Ele vai nascer chorando [inaudível] medicamento [agonizando]. A gente tirar ele, dar todos os suportes médicos para que ele sobreviva e a gente daria para um casal para adoção”.

Segundo a Advogada Thais Boamorte, a atitude da juíza entra na questão de inviabilidade do princípio da dignidade humana, da imparcialidade da juiza; além da questão também de revitimizar a vítima, no caso a criança. “Quando estamos falando de estupro, estupro de vulnerável, não se pode colocar a vítima em situação que lembre aquela violência, é o que chamamos de revitimização”. Isso que a legislação brasileira autoriza o aborto em casos de violência sexual, sem restrições em relação ao tempo gestacional.

“Como criminalista e feminista vejo que a juíza foi tomada pelas suas convicções pessoais ao demorar para julgar o pedido de aborto, bem como colocar a vítima em uma situação em que fere toda a liberdade da criança e sem nenhum acompanhamento psicológico (não citam se houve ou não) e afastando a mesma do convívio com a família.”, completa a advogada.

Se não bastasse, tal postura e comentários caracterizam como violência psicológica e coação, forçando uma criança traumatizada a continuar uma gestação fruto de um estupro, com a justificativa de que “a gente tem 30 mil casais que querem o bebê, que aceitam o bebê. Então, essa tristeza de hoje para a senhora e para a sua filha é a felicidade de um casal. A gente pode transformar essa tragédia”.

Atualmente, existem 35 mil crianças acolhidas em instituições ou famílias temporárias. E por mais que destas 35 mil, apenas 5 mil estejam aptas para adoção, a magistrada não deveria fazer tal solicitação à menor. 

Este caso só traz à tona os valores distorcidos que ainda são perpetuados em nossa cultura: de valorização à vida que ainda está em processo de formação dentro do útero, e o esquecimento (e muitas vezes abandono) das vidas que já estão convivendo conosco, sofrendo das mais variadas formas em situações de risco e vulnerabilidade. Além do machismo estrutural que habita não só na sociedade, mas também dentro de nós mulheres.

Essa infelicidade também nos mostra como podemos deixar de lado a violência que essa criança sofreu, com o descaso diante do agressor. Nas matérias que circulam por aí, não há citação sobre o destino ou situação deste infeliz. Parece até que a criança engravidou sozinha.

Mas o que seria essa situação, se não uma das tantas que uma mulher cis passa desde a infância?

Quantas mulheres e crianças são descreditadas diante de uma denúncia de abuso, violência ou estupro?

Quantos profissionais não deixam a ética e o respeito de lado, fazendo julgamento de valor baseado em suas crenças pessoais, em situações que o profissionalismo deveria imperar?

Toda minha solidariedade à criança e sua família, e tantas outras crianças e mulheres que passaram ou estão passando por uma situação dessas.

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