No dia 08 de janeiro de 2023 tivemos a infelicidade de assistir cenas de destruição e terrorismo, com a invasão dos chamados patriotas nas sedes dos Três Poderes em Brasília. O que aconteceu não foi um ataque ao prédio, cadeiras, mesas e outros móveis – o que por si só já seria preocupante. Foi um ataque à democracia e à nação brasileira, um ataque à decisão tomada pela maioria da população brasileira nas eleições no final do ano passado.
E o que aconteceu ontem não surgiu do “nada”, não foi algo decidido em cima da hora ou de maneira impulsiva. O ato dos bolsonaristas foi planejado, e estava sendo plantado em suas mentes há muito tempo.
Mas como assim “plantado em suas mentes”?
O movimento que estamos vendo hoje vem se desenrolando há anos, de forma “sutil” e aos poucos, conquistando cada dia mais “adoradores”. Podemos até comparar esse movimento patriota com o que acontece em seitas.
O termo “seita” é utilizado para classificar movimentos religiosos marcados por duas características fundamentais:
· apego a um líder carismático
· negação do mundo
Desta forma, quem está de fora está condenado.
É comum que os membros de seitas ao redor do mundo sejam vistos como fanáticos, isso devido aos níveis elevados de negação e exclusão da vida “normal”. Amigos e familiares de quem participa dessas seitas acabam utilizando o termo “lavagem cerebral” para tentar explicar a transformação que seus entes queridos sofreram.
Mas essa “lavagem cerebral” não se dá através de torturas ou cárcere privado, e sim através da palavra, do discurso. Além disso, existe o controle dos canais de comunicação com o restante do mundo - algo que o próprio algoritmo das redes sociais já faz, criando bolhas de conteúdos para seus usuários. A obsessão com a “pureza”, seja ela ideológica, religiosa ou de outro tipo, se torna um combustível desse movimento. E seus membros fazem uso de clichês para impedir o pensamento crítico: por exemplo, se alguém questiona o movimento que estão fazendo, rebatem “mas você não teme a chegada do comunismo? se isso acontecer você vai perder sua casa e seus bens, a família será destruída…”.
A questão é que não podemos convencer alguém a fazer ou pensar algo que ela não tenha ao menos um pouco de vontade de fazer ou de crença no que pensa. E diante dessa barreira, a pessoa faz uso de distorções. Distorce a verdade e a realidade para plantar uma ideologia, dividindo as pessoas em “nós” e “eles”. Com isso, os “fins justificam os meios” nessa luta “tão necessária” para o país, onde precisam “assumir o poder que está nas mãos desses governantes que irão destruir a nossa pátria”.
Nessa distorção da realidade, faz-se uso do viés cognitivo, um atalho mental que leva a desvios de racionalidade e lógica. Nosso cérebro é programado para economizar energia, então, quando estamos diante de situações nas quais precisamos agir, nosso cérebro busca por atalhos que gastam menos energia.
Todos nós temos padrões de pensamentos, que são construídos através de nossas experiências e percepções anteriores, isso desde o nosso nascimento. Então toda a criação e todas as informações que recebemos afetam esses padrões, e na hora em que o cérebro pega um atalho para tomar uma decisão, ele vai fazer uso desse padrão já instaurado.
Ou seja, a situação não é analisada criticamente, nem se usam evidências, mas apenas as percepções que a pessoa tem da situação, baseada em tudo o que ela já viu, viveu e aprendeu. O viés cognitivo é uma análise feita de maneira tendenciosa e uma limitação do nosso pensar.
Então, se a pessoa está há anos numa bolha de informação, recebendo conteúdos similares que falam como as pautas sociais ou políticas públicas podem prejudicar a economia no país, que podem levar o país a um possível “comunismo”, “igual a Venezuela” etc., ou que pode levar tudo o que a pessoa acredita a um fim… Então como essa pessoa não vai acreditar na “solução” que sua bolha oferece? Como ela não vai acreditar no Messias que se faz presente dentro desse movimento?
Como os vieses cognitivos também são baseados nas suas vivências e experiências, as pessoas vão aceitar apenas as informações que reafirmam o que a sua mente já pensou, questionando a veracidade de qualquer tipo de evidência que lhes seja apresentada - como quando dizem que o General Heleno tomou posse da presidência no exato momento em que o Lula é que estava subindo a rampa.
E diante das dúvidas e questionamentos que aparecem com os “de fora” apresentando as evidências, o comportamento de manada fortalece o movimento – movimento que se dá dentro de uma bolha, num contexto de informações específicas ou incertas. E na incerteza do que de fato está se passando e do que é preciso fazer, a pessoa vai seguir o fluxo com os demais.
Esse “patriotismo” distorcido se dá através de movimentos coletivos, pois a coletividade dá a oportunidade para os integrantes sentirem que fazem parte de algo, que são importantes e especiais. Esse sentimento é uma necessidade do ser humano, que é um ser social por essência. Então, se alguém se sente acolhido, fazendo parte e sendo especial em um movimento, com pessoas que lhe tratam bem, lhe entendem e respeitam, com as quais criou laço nos últimos anos, em especial nos últimos tempos de acampamento na frente dos quartéis, esse alguém vai seguir o fluxo desse movimento, sem questionar. E, quando questionando, vão receber respostas que, mesmo incertas e inválidas, fazem sentido para aquelas pessoas, pois se assemelham com tudo o que pensam e acreditam.
Todo esse movimento que estamos vendo, que fez uso de técnicas já utilizadas por seitas, resultou nesse delírio coletivo. As reações dos patriotas não podem ser explicadas fisicamente ou pela intoxicação de alguma substância, e sim pelo viés psicológico, pela proximidade e compartilhamento de crenças e ideais entre os participantes.
Não vai ser fácil desconstruir essa realidade paralela que foi criada. Sim, realidade. Porque o que essas pessoas estão sentindo e pensando é real para elas, o que não significa que é verídico diante da realidade objetiva do mundo. Mas toda essa situação só mostra o quanto a saúde mental é importante e o quanto precisamos desenvolver o pensamento crítico na nossa sociedade.
Não acredite em tudo o que você pensa. E aprenda a lidar com o que você sente.